Ensaiando Textos

terça-feira, 29 de março de 2016

Alma Nua



Foto: Amanda Toledo


Tenho buscado matar minha sede em outras bocas, que não a sua, mas continuo sedenta.
Tenho buscado no barulho das noites calar o silêncio ensurdecedor que sua ausência deixou, mas  nenhum som é capaz de abafá-lo...

Por mesas, rumos e ruas, eu ando buscando qualquer coisa que desvie minha atenção do que de fato eu quero!

Bem vestida, cabeça erguida, de pé, em salto, eu danço, eu rio, eu bebo extravaso, me rasgo! 
Mas por dentro o tédio consome minha alma...

Estou cansando rápido do que inventei, para acreditar que superei, que a dor sarou, que agora sou mais eu e o que passou passou!

Doce ilusão, doce convite, a balada seguinte, a lágrima escondida, a noite sozinha, a cama vazia, o peito aberto e a alma reclama que a nenhum olhar ela mais engana!

Estou aqui entregue, de alma nua e o meu corpo gritando, não sou de mais ninguém se não posso ser sua.


                                                                                                                    Verinha Guabiraba
                                                                                                                            29/03/16

terça-feira, 8 de março de 2016

O Segredo de Mariah

“- Bom dia!”
-Hoje venho pedir um favor! É que eu adoro observar você mesmo de longe. Gosto de perceber seu sorriso quando deixa seu jeito sério de lado e ri de algo em meio à correria do seu trabalho. Por isso faz um favor? Fica de frente pra produção, assim eu poderei observar melhor... Beijo! ”
 Esse foi o texto no bilhete do daquele dia, deixado sobre a mesa de Mariah, entre tesouras, linhas, régua e tecidos cortados.
Por um tempo, quase todos os dias, era o que ela encontrava em sua longa mesa de madeira e ferro, ao acender as luzes do setor ás seis da manhã. Bilhetes simples, outros mais criativos e sempre exaltando sua beleza, seu jeito ou apenas a recebendo com um colorido bom dia!
Mariah exercia função de responsabilidade no controle de qualidade dos produtos de uma camisaria. Passava o dia em pé, apoiada a mesa, recebendo ordens, repassando controles e resultados de hora em hora. Além disso, tinha o poder de fascinar os colegas de trabalho que disputavam sua atenção e poucos sortudos a conseguiam. Mesmo assim, ela não desconfiava de quem eram aquelas letras, nem fazia ideia de como os bilhetes chegavam à sua mesa antes dela no setor. Nunca sondou ou fez alarde pelo fato de ser admirada de tal forma secreta... Apenas agia de forma discreta... E dessa mesma forma, discreta, ela mudou de posição e ficou de frente para a produção satisfazendo o pedido do bilhete.
Ao perceber a troca de lugar, um longo sorriso se formou em meus lábios. Boba como se fosse a primeira vez a estar apaixonada. Sim! Era platônica, mas era paixão e eu adorava cultivar e regar com vontade o frio na barriga que era provocado pela presença de Mariah... Acompanhava cada movimento dos seus olhos tentando encontrar os meus no meio da produção. Sorria de canto às vezes, pois tinha certeza que estava sendo observada. Seus olhos castanhos claros pareciam enfeitiçar. O traço do seu corpo fazia sombra no corredor, arrepiava-me sua voz rouca cheia de atitude ao passar por mim em busca de ajuda para seu trabalho. Tinha uma postura naturalmente superior aos demais. Impunha-se, mas era humilde conquistando a todos com seu ar misterioso que despertava o desejo alheio.


Eu aproveitava cada momento para chegar mais perto, de forma a não levantar suspeitas. Uma amiga partilhava desse amor platônico e me encorajava a me revelar. Na fila do ponto, no almoço, no intervalo da ginástica laboral, no corredor, na sua mesa. Eram mágicos os momentos que conseguia conhecer um pouco mais sobre ela. Aproveitava de informações que os meninos falavam sobre ela no setor. Se estava namorando, o que gostava de fazer... Eu me mordia de ciúmes dos comentários sobre suas pernas, seu sorriso, até do delicado piercing no nariz que a deixava simplesmente sexy.  –Ah! Como conquista-la? Era a pergunta que eu me fazia, mas aos poucos me fiz notar na roda de amigos. Graças ás horas extras de trabalho e pelo fato da minha atividade na fábrica depender diretamente da função dela a aproximação foi inevitável.
Não sei ao certo quanto tempo se passou. Mas houve festas, reuniões de fim de semana com os amigos as quais eu a convidei, ela compareceu, isso facilitou o contato extra trabalho. A última reunião foi uma despedida e antes disso Mariah soube de quem eram os bilhetes.
Numa manhã de Julho de 2008, algo ruim me faria perder o emprego, embora todos quisessem me consolar e fazer pensar positivo, eu arrumei meus pertences pessoais, organizei o setor e orientei a todos aqueles meninos e meninas que trabalhavam sob minha liderança naquele setor que eu construí durante seis árduos anos. À tarde no fim do expediente fui chamada a sala da direção para conhecer a sentença que me tiraria do lugar o qual sempre dei o meu melhor, a minha maior dedicação em anos de trabalho... E eu deixaria ali também, aquele frio na barriga, o sorriso bobo de todo manhã, dos últimos meses ao perceber a presença de Mariah... Depois de ter sofrido uma decepção amorosa enorme e ter sofrido consequências a ponto de perder saúde física e psíquica eu perderia o que mais eu me orgulhava... Meu primeiro emprego!
Ao sair da sala, passei pelo setor dela, a fábrica já havia encerrado o expediente, fui até a mesa dela e escrevi o último bilhete, como sempre fazia antes de fechar o portão e ser a última a ir embora pra casa.
“-Infelizmente não haverá mais bilhetes esperando você chegar. Quero que corra tudo bem, e que eu consiga manter sua amizade lá fora! Sentirei falta de olhar você pela janela da sala, de ver seu sorriso ao bater metas, de sentir seu perfume no intervalo da ginástica e de conversar com você durante o almoço. Você foi como um sonho o qual eu não queria despertar! Mas que de forma real me libertou do medo e da incerteza que eu tinha de conseguir amar outra vez. Você não sabia, mas durante uns meses te amei e você correspondeu mesmo que involuntariamente, ao atender cada pedido meu. Tenha um bom dia!” - Esse foi o único bilhete que eu assinei meu nome.
Depois disso houve a festa em minha despedida, e ela linda me abraçou, reconheceu talvez que foi bom saber que era eu, e sem muitas palavras curtiu a festa e permaneceu em minha vida!

Amigas, confidentes ou amantes em silêncio... O que importa é que ela me aceitou assim, amando-a mesmo que nada realmente fosse possível acontecer. Os anos passaram, eu sempre a tive por perto, outros amores eu vivi, platônicos ou imprestáveis, mas aquele sonho eu guardei... Assim como ela guarda discretamente, o segredo de Mariah.